"Salomé - a sua luxúria um abismo. A sua perversidade um oceano". Salomé foi, depois de Eva, considerada a mulher mais malvada da história judaico-cristã. Há poucas figuras femininas no Antigo Testamento que tenham merecido por parte de escritores, autores de teatro, gravadores, pintores e compositores musicais a atenção que mereceu a jovem Salomé, filha de Herodias e sobrinha do tetrarca da Galileia - Herodes Antipas.
À partida, pela sua beleza e sendo de estirpe real, Salomé teria nascido para fazer feliz qualquer mortal, mas o capricho de exigir a cabeça de João Baptista, transformou-a numa proscrita: a jovem que, sob um ar angelical, é possuidora da pior das perfídias, por usar o dom da sedução e o erotismo para conseguir os seus intentos. A Natureza, rezam os historiadores e a lenda, dera-lhe dons magníficos - um corpo escultural, cabelos negros sedosos, olhos de pantera, boca, braços e pernas perfeitos, como os de uma Vénus - e, foi todos estes atributos que usou para mandar executar João Baptista.
Herodes Antipas, nascido no ano 10 a. C., era filho de Herodes o Grande. Calígula, Imperador romano, dera-lhe o governo da Galileia e de Pereia. Herodes Antipas repudiara a mulher legítima e passara a viver com Herodias (ou Herodíades) sua cunhada. Pior, decidiram mesmo casar-se, ignorando a lei que o interditava. O incesto foi e é, desde tempos imemoriais e em muitíssimas culturas, em diversas partes do mundo, condenado como crime grave. Herodes e Herodias viviam um idílio só interrompido pela voz de um homem estranho, de nome João, que, vindo do deserto, parecia disposto a perturbar o tetrarca e a recente mulher. Esse homem que vivia numa pobreza assumida, como forma de despojamento dos bens terrenos, e se vestia apenas com uma pele de camelo, apertada com um cinto, passara muitos anos no deserto, que percorrera alimentando-se apenas de água da chuva, frutos silvestres, gafanhotos e mel, como conta a tradição. João, sem qualquer poder visível, tinha uma imensa multidão que o seguia, que ouvia as suas palavras e não deixava de clamar contra Herodes e Herodias, pelo modo desregrado em que viviam. Se Herodes não admitia ser importunado por João, a mulher ia mais longe: odiava João Baptista e esperava a melhor ocasião para o fazer desaparecer.
A bela Salomé, filha de Herodias, que fora viver com a mãe para o novo palácio, depois de o pai ter sido preso injustamente pelo irmão, passeava, cheia de mistério, com vestes finas, deixando tudo e todos envoltos no poder da sua sensualidade, a que não ficavam alheios os olhos do tio, dos guardas e de todos os servidores do palácio. A beleza tem um poder imenso.
Salomé era jovem, certamente virgem e o prazer de ser desejada, de momento, satisfazia-a. Mas Salomé não tem apenas uma história. Flaubert, Oscar Wilde, Mallarmé e Eugénio de Castro, para só referirmos alguns, vestiram e despiram Salomé a seu bel-prazer. Deram-lhe e tiraram-lhe ingenuidade e candura ou carregaram-na com paixões mórbidas e a mais repugnante perfídia, conforme a veia criativa os inspirou.
É certo que esta bela jovem da Galileia teve existência real. Para lá dos mitos criados nos 20 séculos passados sobre a sua morte, Salomé mantém-se uma figura histórica inesquecível e para sempre ligada ao nome de João Baptista. No Evangelho de Mateus, aparece apenas com uma simples referência: "Ela dança e agrada a Herodes e aos convivas." O historiador hebreu Flávio Josefo também se refere a ela, dizendo: Aquela que pediu, por conselho da mãe, Herodias, a cabeça de S. João Baptista, por ter dançado airosamente" (Tesouro Bíblico ou Dicionário Histórico - do Antigo e Novo Testamento, p. 263, Lisboa, 1785).
João era conhecido por João Baptista, porque baptizava nas águas do Jordão todos aqueles que acreditavam que um dia a lei dos homens seria alterada com a chegada de um "messias". Como sabemos, foi S. João quem baptizou Cristo, quando este iniciou a sua vida de pregador. João Baptista é uma das figuras mais respeitadas da história judaico-cristã e a sua vida é também admirada pelos muçulmanos. Tem um culto assinalável na Turquia, bem como em várias zonas do Oriente. Envolve-o uma aura de homem bom, num sentido universal e muito mais vasto que o da santidade da Igreja Católica.
João era filho de Zacarias e Isabel, primo de Jesus de Nazaré, que ainda não iniciara a sua vida pública. Isabel concebera-o em idade avançada e João, desde o seu nascimento, tinha a missão de anunciar a chegada do Salvador - de Jesus Cristo. Mas as profecias, mesmo para Herodes Antipas, eram para respeitar e João Baptista tinha o condão de o perturbar. Herodes era um homem pouco culto, medroso, ignorante, pouco mais do que um nómada, e tinha medo do profeta. O tetrarca mandou que o trouxessem à sua presença, pois queria ouvi-lo. João repetiu-lhe o que já dissera antes, que o casamento dele com a cunhada era "sacrílego" segundo as leis. E mais, disse-lhe que a repudiasse e que voltasse para a mulher legítima, que expulsara injustamente, e que, se não o fizesse, cairia a maldição sobre Israel. Herodes, sob pressão de Herodias, mandou-o encarcerar numa prisão-cisterna.
A história dos Hebreus é longa e complexa. Vaguearam pelo deserto em busca da Terra Prometida e, desde sempre, os profetas anunciaram que um dia viria um redentor. Ora, Herodes não ignorava que a religião era algo a respeitar. Vivia torturado entre o prazer e o dever. Era fraco. Não resistia às artimanhas da cunhada, agora sua mulher, que se dizia ter casado com ele apenas por interesse. Ora Herodes nada tinha que se comparasse com o pai, Herodes, "o Grande", que, na religião católica, ficou conhecido por ter ordenado a "matança dos inocentes", isto é, ter mandado executar todas as crianças com menos de dois anos, quando ouviu dizer que um novo rei viria. Esse rei era afinal e apenas "o menino de Nazaré" e o seu reino não seria deste mundo. Não há dados históricos deste facto e, em História, é preciso conhecer as várias versões.
Herodes, "o Grande", filho de Antípatro, foi desde 39 a. C. governador da Galileia e soube enten-der-se com os imperadores de Roma. César deu-lhe o governo da Galileia e durante a vigência do Imperador António (o da paixão por Cleópatra) Herodes obteve o reino da Judeia. Herodes, "o Grande" tomou Jerusalém em 37 a. C. e mandou fazer grandes obras de arquitectura sendo o palácio a obra mais importante, que demorou oito anos a construir. O seu reinado foi uma época de riqueza.
Não podemos esquecer que o cognome de "o Grande" foi usado pelos historiadores, durante séculos, para homens e mulheres que fizeram grandes conquistas e construções majestosas, não estando os atributos morais em causa. Sobre Alexandre, "o Grande", ainda hoje recaem suspeitas se terá ou não estado envolvido na morte do pai; Catarina, "a Grande" (da Rússia) mandou matar o marido, que era o legítimo herdeiro do trono. E, mesmo que Herodes, "o Grande", tivesse mandado matar milhares de crianças, é preciso não ignorarmos que, nesse tempo, imperadores, reis e grandes senhores tinham poder de vida e de morte sobre a família e súbditos. Mas regressemos à bela Salomé. Herodes Antipas quis esquecer que as palavras de João o torturavam e não o deixavam dormir. Era o seu aniversário e quis festejá-Io com toda a pompa. Os seus territórios eram vastos, chegavam bem para lá do rio Jordão e a festa deveria ser falada por toda a parte. Foram convidados todos os príncipes, que acorreram da Judeia e da Galileia e trouxeram os seus séquitos. Bailarinas de longes paragens vieram com a sua graça animar o banquete. Foram preparadas as melhores iguarias.
Entre cada prato servido, tocava-se música e as bailarinas núbias e egípcias, ao som de alaúdes e flautas esvoaçavam entre os convivas. Os vinhos de Chipre e da Grécia enchiam taças de metais preciosos e reinava a alegria. Na sala do banquete só era permitida a entrada a elementos do sexo masculino. Bailarinas e escravas, não eram consideradas pessoas. Estavam ali para o prazer dos convidados. Era o costume do tempo.
De repente, reza a lenda, a orquestra faz silêncio e, para surpresa de todos, aparece uma bailarina desconhecida acompanhada de escravas. Todos esquecem a refeição e não tiram os olhos daquela beleza sem rival - era Salomé. Ela vai dançar. As escravas passam-lhe pelo corpo perfumes, sândalo e outras essências. Colocam-Ihe nos braços e tornozelos pulseiras. Salomé está descalça e as suas vestes são tules e finas musselines transparentes, a fazerem adivinhar um corpo perfeito... e então Salomé começa a dançar. Eugénio de Castro, no seu poema lírico, descreve-a assim:
"Radioso véu, mais leve que um perfume,
Cinge-a, deixando ver sua nudez morena,
Dos seus dedos flameja o precioso lume
E em cada mão traz uma pálida açucena.
E a infanta avança. ao som dos burcelins...
Como sonâmbula perdida
Em encantos, místicos jardins,
Dir-se-ia que dança desmaiando
Ao perfume das flores que estão em roda...
Dir-se-ia que dança e está sonhando...
Dir-se-ia que a estão beijando toda..."
Salomé termina a dança. Os aplausos são entusiastas. Os convidados de Herodes querem mais. E Herodes, louco de desejo, pede: "Salomé, dança mais uma vez!" Ela recusa, esquiva, mas de novo o tetrarca seu tio insiste: "Dança para mim outra vez! Se o fizeres, pede-me o que quiseres que te darei, nem que seja metade dos meus reinos. Tudo será teu!" Salomé hesita, mas depois, num relance, percebe que tem, naquele momento um poder imenso e vai usá-lo. Como? Caprichosa, e sem pestanejar, como quem tira um fruto maduro de uma taça, diz: "Quero a cabeça de João Baptista numa bandeja de prata." Herodes Antlpas fica branco, quase petrificado, não acredita no que ouve e diz-lhe para escolher algo diferente. Que peça jóias, tecidos caros mandados vir de longínquas paragens, os luxos mais inatingíveis, mas a cabeça do profeta não. Herodes tem medo, não é a bondade que o faz agir assim, ou talvez, lá no fundo, pense que aquele homem não merece a morte, porque não é um criminoso, não atentou contra a vida de ninguém, embora nesse tempo mandar matar fosse quase uma banalidade.
Imperturbável, Salomé repete, sem hesitar: "Danço outra vez para ti, se me trouxerem a cabeça de João Baptista." E Herodes cede. Tem de cumprir a palavra dada perante tantas testemunhas e manda que as suas ordens se cumpram. Entrega ao chefe da guarda pessoal o seu anel, para que este o mostre ao carrasco e para que este execute, sem demora, a sentença. A prisão onde estava João Baptista distava ainda alguns quilómetros do palácio. Terá havido um silêncio arrepiante? Ou a música e o festim prosseguiram?
Um pouco mais tarde, a cabeça de João Baptlsta é trazida à presença de Salomé. Esta olha-a, ainda ensanguentada. A partir daquele momento, João Baptista é um mártir, é o santo que tantos séculos depois a humanidade não esqueceu. É evocado no dia do seu nascimento - 24 de Junho -, mas, em alguns locais, também se comemora a sua memória a 29 de Agosto, dia em que foi degolado. Desde logo, S. João foi respeitado e o imperador Constantino mandou edificar a basílica de São João de Latrão. Roma possui mais de 20 igrejas consagradas ao santo degolado por ordem de uma mulher.
Quanto a Salomé, tudo o mais é lenda. Há várias versões para o fim que teve Salomé. Temos de voltar à fantasia de quem a pintou e de quem sobre ela escreveu páginas de literatura. Para Oscar Wilde (1854-1900), o autor da mais famosa peça sobre Salomé, escrita para o teatro e para a actriz francesa Sarah Bernhardt, Salomé é a encarnação da perfídia, porque ela amara João, que a não desejou, por isso ela agiu por vingança. Quando lhe trouxeram a cabeça do mártir ela beija-o na boca, desesperada. A peça é tão impressionante e tão contra os cânones da época que foi proibida em Inglaterra, na Áustria, na Suécia e noutros países. Só em França foi representada, com sucesso, em 1896.
Depois da peça de Oscar Wilde, Richard Strauss fez a música da ópera do drama de Salomé e João Baptista. Houve quem compusesse bailados sobre o tema, mas é na iconografia sobre Salomé que encontramos o maior e mais diversificado número de interpretações: gravuras, desenhos, telas de pequenas e grandes dimensões, esculturas. Quase todos os grandes museus do mundo têm quadros com João Baptista e Salomé, Há representações remotas, sendo conhecidas obras de toda a Idade Média. De referir, em particular, um belíssimo quadro de Filippo Lippi (1406-1469), uma gravura de 1583 da Bíblia Sacra de Antuérpia e outra, também de Antuérpia, de 1715. Portugal tem no Museu de Arte Antiga quadros sobre o tema e o museu de Tomar alberga, da Escola de Gregório Lopes, do século XVI, um exemplar belíssimo sobre o tema da mulher má e do santo degolado.
Leonardo da Vinci, Ticiano, Caravaggio, Bernardo Luini, Veronese, Pedrini, Rembrandt, Regnault, Eduardo Toudouze, Max Slevogt, Hugo von Habermann, Delacroix, Otto Friedrich, Klimt, Lovis Corinth, Fritz Erler, Juana Romani e Ella Ferris Pell são alguns artistas que se deixaram seduzir por Salomé. Até Picasso e Dali não resistiram ao seu erotismo. Uns vêem uma Salomé sanguinária, a completa encarnação da maldade, outros uma Salomé ingénua, que terá apenas obedecido à mãe, que lhe sugere o tenebroso pedido. Fosse como fosse, nenhuma mulher foi ou será considerada tão pérfida como Salomé. O grande, o maior pintor de Salomé foi Gustavo Moreau, que, entre esboços, desenhos e telas, terá dado vida a uma única Salomé em mais de uma centena de versões.
Talvez Salomé jamais mereça perdão, não só por ter mandado executar um homem bom, de nome João Baptista, mas porque continua a seduzir-nos por detrás daqueles olhos belos e provocantes, quando a olhamos, bem de frente, nos museus de todo o mundo.
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